Os anti-intelectuais

Ruy Fausto, professor emérito da USP (Filosofia)

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O Estadão de domingo, 27 de março, publica, em “notas e informações”, um texto com o título “Os anti-intelectuais”, a propósito dos manifestos e abaixo-assinados de intelectuais e artistas contrários ao impeachment, texto que merece reflexão.

O artigo começa assim: “Mesmo diante das volumosas evidências de que o lulopetismo é autoritário por natureza, mesmo que abundem provas de que o chefão Luís Inácio Lula da Silva e seus seguidores tramam à luz do dia contra as instituições republicanas, mesmo que seja clara a ânsia da tigrada de calar a imprensa livre e favorecer o jornalismo companheiro a serviço do pensamento único, ainda assim há intelectuais – ao menos é assim que eles se identificam – que se dispõem a defender, em nome de um suposto espírito democrático, um governo e um partido cada vez mais identificado com tudo aquilo que ofende a democracia e os padrões morais de uma sociedade civilizada”. Segue-se o bordão dos “assim chamados pensadores” ou dos “autoproclamados pensadores”. Estes “não se referem à escandalosa transformação do Estado em balcão de negócios criminosos, que, ao beneficiar partidos, políticos e empresários amigos de Lula e da presidente, dilapidou o patrimônio de todos os brasileiros, a começar pelos mais pobres”. Os famigerados pseudointelectuais também não fazem menção aos ataques que Lula e Dilma estão “desferindo contra o Judiciário e a imprensa livre e independente, a quem acusam de tramar” um golpe, e utilizam “as já banalizadas referências à ditadura militar” para demonizar “o movimento que pretende expulsar do poder aqueles que, estes sim, conspurcam a Constituição e escarnecem a Justiça”.

E por aí segue e conclui a filípica contra “os intelectuais que venderam sua alma ao lulopetismo” e que pretendem que a defesa da democracia se reduza “à mera defesa do PT, de seu projeto autoritário e de seu caudilho fanfarrão”.

Será assim mesmo? Vamos por partes. Primeiro, quem são os “assim chamados pensadores”? Prefiro não dar nomes, mas que se examine bem esses manifestos e abaixo-assinados (e avisamos os senhores de O Estado de que haverá outros…), e ver-se-á que as principais assinaturas que os avalizam não são as de pessoas de pequena expressão e reconhecimento (embora também respeitáveis), mas de algumas das maiores figuras do mundo intelectual brasileiro, entre as quais estão antigos colaboradores de O Estado (houve tempo em que o jornal tinha um Suplemento Literário, no qual aliás escrevi algumas vezes, Suplemento que era dirigido por gente do entorno político dos que hoje assinam os famigerados manifestos). Mas agora, do exame de quem assina os manifestos, passo ao exame daquilo de que se lhes acusa, e também ao exame de quem acusa. As manifestações dos intelectuais e artistas visariam, em princípio ou essencialmente, defender o PT e os seus líderes, ou mesmo justificar – é o que o texto insinua – os atos ilegais praticados por gente desse partido (atos que não são os únicos, mas que nem por isso deixam de ser ilegais)? Para começar, muita gente que manifesta tem pouco a ver com o PT. Sou obrigado a falar um pouco de mim mesmo.

Não sou nem militante do PT nem simpatizante desse partido (embora tenha votado nele algumas vezes, mas sempre com reticências). Também não sou nem militante nem simpatizante de partidos de extrema esquerda, como o PSOL. Sou de esquerda independente há perto de quarenta anos. Por ocasião do mensalão, escrevi dois artigos, que a imprensa publicou, cujos títulos eram “A Gangrena” e “Depois da Gangrena” (artigos republicados no volume Outro Dia, editado pela Perspectiva). Nesses textos, eu insistia sobre a gravidade da crise do PT e do governo Lula, sobre a necessidade de proceder a uma limpeza total dos seus quadros e a uma alteração radical do seu estilo político, sob pena de um naufrágio inevitável. Outros escreveram também no mesmo sentido. Mas o PT não reagiu nem mudou Passando da minha pessoa, que importa pouco no caso (senão como testemunha) para o cenário atual. Seria verdade: 1) Que a ampla mobilização popular contra o impeachment (a propósito, Fernando Henrique Cardoso fala da voz “das ruas”, seria bom que ele ouvisse todas as vozes) estaria centrada na defesa de Lula e do PT?; e 2) Que ela faz vistas grossas para a gravidade do problema da corrupção? Com relação ao primeiro ponto, devo dizer, pelo que pude observar na reunião do TUCA, no dia 15, e na concentração do dia 18, que isto é, pelo menos, duvidoso. No TUCA falou-se um pouco de PT e de Lula, mas a tônica foi a legalidade e a democracia. Aliás, ouviu-se o depoimento de um bom número de juristas sérios. Na concentração do dia 18, não foi muito diferente. A concentração era pela defesa da democracia e da legalidade, não em defesa de Lula e do PT. Quanto ao segundo ponto, não vi nenhum documento anti-impeachment que não criticasse a corrupção e a necessidade de combatê-la. Entretanto, é verdade, teria sido, e será no futuro, necessário falar muito mais a respeito. É preciso insistir no fato de que houve mesmo corrupção e muita, e de que iniciativas judiciais como o Mensalão e a Lava-Jato são positivas. O problema é que a coisa descambou.

Remeto, a esse duplo respeito (a saber, que houve “descarrilhamento” na campanha pela moralidade administrativa, e que nem por isso se deve por panos quentes quando se trata de falar de corrupção) ao excelente artigo de Antônio Prata (“Crítica e autocrítica”, Folha de São Paulo, 27 de março). O autor que é, sem nenhuma ambiguidade, adversário do impeachment, escreve o seguinte: “(…) a parcialidade, a ilegalidade do Judiciário e o ódio classista não podem ser usados pela esquerda para negligenciar os estimados R$ 40 bilhões roubados da Petrobras durante os anos do PT. Nem para negar a recessão a que políticas econômicas canhestras nos levaram [aí, há que definir qual seria a boa política, RF] (…) Nem justificar a Bolsa Empresário que despejou bilhões de reais pelo ralo do BNDES (…) Se aqueles que, como eu, se identificam com muitos ideais da esquerda, fizermos vista grossa pros descalabros petistas, não teremos moral para acusar o Ministério Público de fazer vista grossa para os descalabros da oposição”. Assino embaixo desse texto. Mas, voltando ao editorial de O Estado, e ao próprio jornal. Que pretende o Estadão com a sua campanha? E, finalmente, qual a significação profunda dessa campanha?

Em primeiro lugar, deve-se insistir na violência dos termos. O discurso de O Estado, como o da direita brasileira, na situação atual, é um discurso de ódio. De onde vem esse ódio e para onde vai? Eles estão indignados por que o partido atualmente no poder se comprometeu com ações ilegais, ações que têm, indiscutivelmente, um custo social e econômico enorme para o país? Talvez um pouco. Mas o ódio é tal que não podemos deixar de desconfiar que haja outras coisas (tenho lido todos os dias aquele jornal). Por outro lado, mistério: O Estado está contra a corrupção, mas apoia a figura do senhor Michel Temer, como candidato à sucessão de Dilma Rousseff. Temer é mais honesto do que Dilma? Francamente, duvido disto. O próprio Estado já afirmou, salvo erro, que Dilma não é desonesta. Por outro lado, o jornal se empenha em saudar a união do PSDB com o PMDB. Esse último partido, como é notório, sempre hasteou a bandeira da honestidade e da seriedade administrativa… O Estadão fazendo elogio do PMDB, em nome da luta contra a corrupção! Creio que os velhos Mesquita devem estar se virando na cova (O Estado sempre foi um jornal conservador, mas ele nunca fez concessões ao populismo, e de resto, havia frequentemente, um zesto de democratismo-constitucionalista naquele conservadorismo; parece que o jornal mudou). Aliás, a respeito de Temer, não posso deixar de mencionar, lamentando muito, a atitude do nosso colega Fernando Henrique Cardoso. Fernando Henrique, que foi um sociólogo crítico, nos assegura em entrevista (ver O Estado da semana passada), que se Temer não é estadista, ele irá se tornando pouco a pouco… (não é citação literal, mas o sentido era este). Fernando Henrique, ex-homem de esquerda, e sociólogo crítico eminente, quer Temer no poder, e não poupa elogios ao (futuro?) estadista… Aonde estamos. (O ex-líder estudantil José Serra vai ainda mais longe: é o verdadeiro campeão da solução Temer…). Deixo claro. Se não poupo o PT nem a extrema esquerda (e nem a direita, bem entendido), também não posso me calar sobre o destino de uma antiga social-democracia. Não se trata de criticar a social-democracia à maneira tradicional do bolchevismo (essa crítica é falsa porque os erros da social-democracia, reais, foram entretanto menores do que as do bolchevismo), mas é lamentável ver o destino (que não é o da social-democracia, mas de uma certa), que, recusando, não sem motivos, tanto o populismo petista como o neoleninismo de PSOL e cia, optou por um caminho pelo menos tão ruim (provavelmente pior): abraçou os partidos dominantes, deu um beijo em Antônio Carlos Magalhães, andou de braço com Sarney etc etc.

Não, senhores de O Estado, não somos defensores da esquerda populista (ela fez algumas coisas, como vocês mesmos reconhecem de vez em quando), mas ela também fez muito mal à esquerda e ao país, com as suas práticas escusas. Também não somos a favor do pseudossocialismo totalitário, como vocês insinuam de forma desonesta. Sem dúvida, alguns de nós tiveram ilusões nos autoritarismos de esquerda, mas isso pertence essencialmente ao passado. Não ouvi nenhuma manifestação desse tipo nem no TUCA, nem na manifestação do dia 18 (Há 20 ou 30 anos atrás, isso seria diferente; mas apesar da China, que é aliás um país capitalista sui-generis, o socialismo de caserna está morto, felizmente). E já que se fala em autoritarismo, seria bom que o Estadão nos explicasse um pouco melhor a sua atitude a respeito da ditadura militar (as referências a ela não estão tão “banalizadas”, como se lê no artigo…). Diga-se de passagem, que se do “nosso lado” houve indiscutivelmente muita gente com projetos duvidosos, isso não justifica a brutalidade sangrenta e criminosa de civis e militares implicados na repressão. Disso O Estado parece não gostar de falar. Finalmente, como já me expliquei acima, somos adversários também da terceira degenerescência da esquerda, a que se chamava de “reformismo” e que, hoje, é antes, um adesismo. No Brasil, ela é representada pelo destino triste dos antigos sociais-democratas que constituíram o PSDB (partido que “degenerou” tanto ou mais do que o PT, embora, em parte, de outra maneira).

O artigo do Estadão que serviu de ponto de partida às minhas considerações se insere em um formidável movimento, que já não tem muito a ver com a luta contra a corrupção. Um movimento com características de classe evidentes, que visa colocar no poder, por meios duvidosos, um governo claramente de direita, senão de extrema direita (que os peessedebistas tomem cuidado, eles ficarão para trás). Um movimento que desperta velhos reflexos elitistas antipopulares, alguns de caráter fascistisante. Assim, um padre é agredido em plena missa, aos gritos de: “comunista, comunista”. Assim, um rapaz é quase linchado por que gritou “não haverá golpe”. Assim, uma figura tão sinistra como Bolsonaro aparece como o grande herói de manifestações, que chegaram ao cúmulo de montar um boneco representando um muito honesto e imparcial ministro do Supremo Tribunal. Assim, jornalistões fascistoides levantam a cabeça saudando o “presidente Temer”. Não seria exagero dizer que se respira um clima de pré-golpe, com a tal “imprensa livre e independente”, mostrando bem que a sua liberdade e independência é a da raposa no galinheiro. As associações patronais se mobilizam. Elas arrastam não a pequena burguesia, como se costuma dizer, mas uma parte desta (uma outra parte manifestou contra o golpismo pró-impeachment, junto com uma população mais “pobre”, no dia 18; e se a esquerda tivesse tido uma atitude bem clara de recusa de toda tentativa de “levar a poeira para baixo do capacho”, mais pequenos burgueses teriam saído à rua no dia 18 e não no dia 13). Tudo tem de ser posto na mesa. Por razões de princípio. Mas também por razões de pragmatismo político: se não o fizermos a direita o fará, e com isso tentará ocultar a tempestade de pó que ela arrasta e que, esta, não cabe sob nenhum tapete. É o que tenta fazer O Estado, com muito ódio e desonestidade.

 

Ilustração: Rafael Moralez

 

 

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12 respostas para Os anti-intelectuais

    • birovisky disse:

      Uow Não vamos aqui apontar para uma determinada religião, afinal assuntos como política, religião e futebol geram discussões infinitas e você nunca conseguirá mudar a opinião contrária até que o seu precursor seja prejudicado pelo lado que defenda. O ponto aqui é outro.

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  3. Questões Relevantes disse:

    Sou fã do Ruy Fausto. Ele empresata verdadeiro sentido à palavra “intelectual”.

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    • Questões Relevantes disse:

      No entanto, discordo da mensagem embora admire o mensageiro. Há pontos interessantes em sua análise, evidentemente. Há até razão na crítica ao tom do Estadão. Mas ele se perde em conjecturas equivocadas. À eventual queda de Dilma não sobrevirá um apoio incondicional a Temer e ninguém sensato espera isto, no mínimo porque teremos o PT e outros partidos à esquerda na oposição, cobrando a continuidade da Lava Jato e outras investigações. Que há um jogo político não há dúvida, mas as razões para o impeachment existem, são sólidas e, por esta razão, não agridem de forma nenhuma a democracia nem tão pouco justificam estes manifestos que, acabam estabelecendo, queiram eles ou não (na realidade, parecem querer), um apoio não à legalidade, mas ao PT que simbolizou um dia o sonho da esquerda. O protegem como a um filho de quem não se quer reconhecer os crimes.

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  5. paulosisinno disse:

    Republicou isso em Paulosisinno's Bloge comentado:
    Os anti-intelectuais – por Ruy Fausto, professor emérito da USP (Filosofia)

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  7. democriacao disse:

    Fica cada vez mais evidente que o julgamento da Dilma é político. Até o MPF já se manifestou em desfavor da criminalização das pedaladas. Só resta saber se o povo, não os intelectuais que são a minoria, irão à rua a favor da legalidade. Se não for assim, como poderia ser?

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